Difundida hoje principalmente pelas redes sociais e plataformas de streaming, a cultura sul-coreana nunca foi tão falada e comentada mundo afora. Este movimento ganhou até um nome: “Hallyu”, que se refere à onda de crescimento exponencial, divulgação e “exportação” de atividades e produtos da cultura pop coreana, sejam eles filmes, músicas, jogos ou gastronomia – o Brasil é parte ativa deste movimento.
Quem nunca ouviu falar sobre K-pop, o estilo musical pop coreano que tanto faz sucesso entre os jovens? E sobre os K-dramas, que são as séries que estão dominando grande parte da audiência no streaming atualmente? Sem falar no Soju, a bebida coreana que ganhou espaço nas rodas de amigos e negócios, além dos pratos tipicamente do país.
Pois o que parece moda aqui no Brasil, na verdade, percorreu um caminho de seis décadas para alcançar os patamares de hoje. A internet deu um empurrãozinho para essas “novas atividades”, é claro, mas a relação entre Brasil e Coreia do Sul não é de hoje e não se resume apenas ao “Hallyu”.
A presença de uma comunidade coletivamente forte que trabalhou duro e esperou bons anos para ser reconhecida positivamente por aqui teve papel fundamental na raiz e nesta grande trajetória, que teve seus desdobramentos modernos mais tarde.
“Quando os coreanos começaram a vir para o cá, muitos brasileiros não aceitavam. Havia discriminação por muitos não falarem português – uma língua super difícil de aprender. Muitas pessoas falavam para voltarmos para a nossa terra por conta das diferenças culturais, que eram muito grandes. Então, uma Associação foi criada com o intuito de promover a socialização destes imigrantes e tornar-se uma grande rede de apoio para eles. Hoje, o cenário mudou e nosso papel não é trabalhar só internamente, mas sim promovendo nossa cultura e sendo ponte entre as sociedades”, ressalta Bruno Kim, presidente da Associação Brasileira de Coreanos que chegou ao Brasil com apenas 7 anos. Ele é casado com uma sul-coreana, mas seus dois filhos nasceram no Brasil.
São Paulo e Coreia do Sul têm uma história que começou oficialmente em fevereiro de 1963. Foi nesta época que o primeiro navio com imigrantes vindos diretamente do país atracou em terras brasileiras, trazendo na mala sonhos e a esperança de uma vida melhor, depois de um período sombrio de guerra e grande crise econômica por lá.
Hoje, 61 anos depois, a estimativa é que 50 mil sul-coreanos e seus descendentes vivam no Brasil, mais especificamente em São Paulo, onde aproximadamente 90% desse número residem.
A estreita relação, principalmente com a capital paulista, vem desde “o dia 1”, quando famílias recém-chegadas fizeram da região seus novos lares. Os bairros do Glicério, Aclimação, Liberdade e do Brás foram os primeiros que receberam uma grande parcela de quem tinha acabado de desembarcar no país. Por lá, muitos viveram durante anos – e ainda vivem.
Mas, foi o Bom Retiro, na zona central da cidade, que tornou-se o grande reduto da comunidade coreana no Brasil. A indústria têxtil foi a atividade escolhida para o ganha pão de muitos deles em meados da década de 1980, o que revelou-se no futuro ter sido uma grande aposta. Até hoje, grandes confecções do bairro pertencem a estas famílias. Suas produções são distribuídas para o país inteiro – são cerca de 2.000 CNPJS de empresa de imigrantes na região, segundo Bruno.
Consequentemente, é no Bom Retiro também que as principais atividades da unida comunidade acontecem e podem ser encontradas. Restaurantes, bares, sorveterias, lojas, feiras, mercados típicos e mercearias são só alguns exemplos. Estar no bairro é fazer uma verdadeira viagem para a Coreia sem sair do país – até funcionários destes estabelecimentos vindos de diversas partes do Brasil começaram a se arriscar na língua coreana para atender melhor seus clientes. E o interesse por este roteiro tem aumentado a cada ano. Mas, por quê?
Bruno ressalta a importância de grandes eventos para que a Coreia do Sul fosse cada vez mais falada por aqui, despertando a curiosidade de muitos. Para ele, os jogos Olímpicos de Seul, em 1988, e a Copa do Mundo de 2002 foram o pontapé para os caminhos começarem a se abrir.
Mas um fato curioso, que aconteceu anos depois, é considerado por muitos como um divisor de águas para a popularização e curiosidade sobre a cultura do país aqui no Brasil: a vinda do cantor sul-coreano “Psy”, que estourou com o hit Gangnam Style em 2012 e veio passar o Carnaval aqui em 2013.
“Quando eu vim para o Brasil, ninguém sabia onde ficava a Coreia. Perguntavam se eu era japonês ou Chinês. Todos esses acontecimentos foram abrindo o caminho para nossa cultura. Para a gente, é uma alegria muito grande ir de “patinho feio” para alguém querido. Sou abordado sempre por jovens fãs de K-dramas ou Kpop que pedem fotos comigo. Falo que não sou ninguém famoso, mas querem tirar mesmo assim só porque sou coreano”, conta Bruno rindo.
Além dos eventos mencionados, Bruno exalta o auge do sucesso das séries coreanas para o aumento do interesse público na cultura, seja para o turismo ou para a gastronomia. Ele explica que o termo “dorama”, como muita gente chama as novelas e séries do país, na verdade é utilizado de maneira incorreta.
“O correto é falar “K-drama”, um estilo muito próprio e único do audiovisual sul-coreano que já faz sucesso há décadas. A palavra dorama veio da cultura japonesa muito influente no país”, completa.
“Os dramas coreanos têm uma
estética e essência únicas, é algo inédito e diferente dos outros países asiáticos. A Coreia veio de uma dominação japonesa muito longa. Depois da guerra, a situação era de muita pobreza. Os dramas coreanos, então, nasceram com o objetivo de trazer leveza para o dia a dia, tentando aliviar a tristeza da realidade que o país vivia. A indústria audiovisual coreana criou uma estética própria que é um grande mix de todos os gêneros em um produto. Então, na mesma série você ri, você chora, você rói as unhas”, explica.
Hoje, os rótulos são bastante acessíveis, mas nem sempre foi assim. Bruno conta que há cerca de 10 anos, grupos fãs da cultura aqui no Brasil se uniam para dublar dramas coreanos que só iam para o mercado europeu e distribuíam entre eles. Muito populares hoje, ele foram vendidos em grande escala para canais importantes e estão no auge do sucesso.
Nestas séries, que costumam ser bem leves e divertidas, o público tem contato com comidas típicas, pontos turísticos e atividades culturais que sempre aparecem nos enredos, despertando muitas vezes a vontade de provar um pouco sobre isso.
A notícia boa é que em São Paulo, muitos programas podem ser encontrados: de karaokês – muito tradicionais por lá – a sorveterias, passando por bares, restaurantes e mercadinhos típicos, confira uma sugestão de roteiro para mergulhar nesta cultura na cidade:
Começaremos nosso roteiro com uma das coisas que os olhos mais brilham assistindo essas séries: a gastronomia!
De acordo com uma pesquisa realizada na Coreia do Sul ao longo de 2022 pela empresa alemã Statista, cerca de 68% dos turistas afirmaram que escolheram a Coreia do Sul como destino de viagem para fazer passeios gastronômicos ou gourmet.
Presenças certas nos Kdramas estão: o Jajagmyeong, o famoso macarrão com molho preto; o típico churrasco coreano; o emblemático frango frito bem crocante (para comer, de preferência acompanhado
da bebida coreana Soju); o Hot Dog Coreano (Corn Dog); além dos populares Bibimbap, e o indispensável Kimchi, que estão sempre nas mesas coreanas.
Vale destacar que em São Paulo há cerca de 50 restaurantes típicos do país. Eles ficam principalmente – mas não só – na região do Bom Retiro, tanto com essas opções mais populares e “comidas de rua” quanto com pratos menos conhecidos em seus cardápios.
A cozinheira Suzana Cho é dona de um dos restaurantes coreanos mais tradicionais e “raiz” de São Paulo, o Seok Joung. Filha de pais imigrantes coreanos – um dos primeiros a desembarcarem no país -, ela nasceu e cresceu no na cidade de São Bernardo do Campo, em São Paulo. Sua mãe, cozinheira de mão cheia, vivia sempre com a casa cheia e era muito elogiada pelas delícias típicas coreanas que preparava para a família e amigos. Ter um restaurante, entretanto, tornou-se uma ideia apenas muitos anos depois, após o falecimento do patriarca da família e de outros negócios que investiram, como uma floricultura, uma lavanderia e lojas de conveniência e aviamentos.
Hea Ja Shin Co, mais conhecida como Dona Regina, comprou um restaurante que estava à venda no Bom Retiro em 2001 e abriu as portas do que até hoje é reduto fiel da comunidade. Ela, que completou recentemente 84 anos, trabalha diariamente no local e faz questão de fazer e supervisionar cada prato que é servido.
“Somos sócias no negócio, mas é ela quem ensina todos e gosta de fazer tudo do jeitinho dela, não abre mão de colocar a mão na massa. Posso garantir que há 22 anos o nosso restaurante oferece pratos que têm o mesmo sabor desde sempre. Comida que é boa não muda. Muitos clientes coreanos nossos falam que é uma viagem direta para Corea, lembrando aquela comida de mãe”, conta Suzana.
A cozinheira explica que no começo seu público era praticamente 100% coreano, mas sente que a partir de 2010 isso foi mudando.
“O número de pessoas curiosas começou a aumentar. E se antes o cheiro, muito forte por conta dos temperos coreanos, incomodava, hoje é motivo de vontade. É muito bom ver as pessoas passando na calçada e falando que o cheiro está delicioso. O brasileiro antes tinha receio. Os cardápios antes eram todos em coreano e não tinham explicação do que estava sendo servido. Acho que fomos um dos primeiros a ter funcionários falando português, o que acabou aproximando também o público. Com filmes, novelas e outros produtos da Coreia, esse movimento começou a aumentar muito, principalmente pós-pandemia”, explica.
Suzana, que é responsável por
cozinhar para os principais grupos de Kpop quando vêm ao Brasil, conta que o restaurante virou também ponto de encontro para os fãs das séries coreanas. Ela diz que é comum ver por lá grupos que se conheceram por conta deste interesse em comum, com pessoas de toda a parte do Brasil.
“Tem um grupo de amigas de toda a parte do Brasil que não se conheciam pessoalmente e marcaram o primeiro encontro aqui. Fãs das séries, elas querem explorar tudo da cultura coreana. Vão a shows de Kpop, querem comer a comida e estão embarcando neste mês pela segunda vez para a Coreia”, conta a chef, que virou amiga também de muitos clientes.
O tradicional restaurante passou a atender esse público e adaptou o cardápio com itens muito vistos nestes produtos audiovisuais. É comum também Suzana receber pedidos de pratos específicos para encomenda.
Entre os que mais fazem sucesso por lá está o “Dorsot Bibimpap”, um famoso risoto coreano preparado com carne agridoce, legumes frescos, algas, raízes e um ovo perfeitamente cozido. Ele é servido em um prato de pedra vulcânica bem quente com molho de pimenta coreano que adiciona calor e liga o prato. “Esse é um tradicional prato da rotina alimentar coreana. A combinação proporciona uma experiência saudável, nutritiva e saborosa”, explica a cozinheira.
Outro item que os dorameiros encontrarão por lá é o “Burgogui”, típico churrasco coreano. Lá, a carne fatiada leva um segredo do local. “Este prato vibrante e saboroso é acompanhado por uma porção de arroz branco e o nosso tradicional Banchan, um conjunto variado de pequenos pratos laterais que incluem o aclamado “Kimchi”, um fermentado apimentado e profundamente aromático, considerado a alma da culinária coreana.
É uma experiência gastronômica rica e obrigatória para os amantes desta culinária”, enfatiza Suzana, que destaca outros de seus pratos preferidos como o picante “Geok Bokum”, que leva fatias de carne suína, legumes frescos, tteok e molho tradicional coreano; o ReDpoBab, um risoto de sashimi combinado com legumes e verduras fresca; além do NenMyon, um macarrão gelado de batata servido em um caldo transparente de carne.
Se você é um deles que quer mergulhar um pouco mais nesta viagem gastronômica, veja mais endereços para incluir em sua passagem pelo Bom Retiro: